Última alteração: 2017-10-16
Resumo
O cangaço, fenômeno de banditismo vivenciado entre o final do século XIX e o começo do XX no Nordeste brasileiro, acabou há muitas décadas, mas sua memória continua recebendo valorações que despertam recorrente estranhamento. Uma inquietação basilar é, sem dúvida, entender como indivíduos que tiveram vários feitos criminalizados passaram a ter memórias idealizadas como pertencentes a conjuntos de bens reconhecidos como patrimônios em certos lugares. Foi o que aconteceu no início dos anos 1990, a saber, quando tentou-se construir uma estátua gigante para o cangaceiro Lampião em sua terra natal sob justificativa de que ele “não seria nem bandido, nem herói, mas sim história!”, apesar das vozes contrárias à iniciativa que ameaçavam explodir a construção caso fosse realizada. Como compreender essa situação para além do malabarismo retórico em cena? A proposta desse trabalho é apresentar discussão sobre a cultura da memória do cangaço no tempo presente em que se problematiza sua vinculação com a identidade nordestina através de enfoque no campo do patrimônio cultural. Particularmente, o interesse é examinar vetores do “boom da memória” gestado em partes do mundo ocidental no terço final do século XX, percebendo efeitos que permitem depreender suas transmutações associadas ao desejo de tradição, dever de memória e consumo cultural; analisar experiências mnemônicas em diferentes cidades nordestinas, observando acordos e conflitos em torno desse peculiar “passado que não quer passar” regional; e perceber como a memória cangaceira parece constituir-se enquanto patrimônio cultural nordestino simultaneamente reivindicado, dissonante e contestado. As perspectivas oriundas da história da memória e do patrimônio norteiam o estudo nesse esforço de elucidar as lembranças, os esquecimentos e os silêncios envolvidos em sortidos vestígios tomados como fontes na investigação. Trata-se, enfim, de diligência para pensar um tipo de patrimônio que se distancia do consenso estabelecido.